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Dia do Índio x Dia dos Povos Indígenas

Há muito se reconhece que a palavra índio deriva do engano de Cristóvão Colombo que julgara ter encontrado as Índias, e assim designou os habitantes do “outro mundo”, como dizia, na sua viagem de 1492. Do erro do colonizador já decorreram 532 anos, mas os povos originários das Américas continuam sendo chamados de índios.

Cerca de uma década atrás surgiram iniciativas para abolir o uso legal da expressão que agora, desde julho de 2022, tornou-se lei. Hoje, o dia do índio chama-se oficialmente “dia dos povos indígenas”, comemorado, no Brasil, em 19 de abril. Na motivação da legislação encontra-se a compreensão de que o termo “índio” evidencia uma carga de preconceito e discriminação, já indígena significa “originário, aquele que está ali antes dos outros” e, assim, valoriza a diversidade de cada povo.

Por falar em diversidade, há que se lembrar a variada composição da população originária no Brasil. São inúmeras etnias diferentes, com línguas, valores, hábitos culturais, cosmologia, diferentes. Mas é claro que os colonizadores não sabiam disso: pra eles, aqueles seres sem alma, eram, na expressão coletiva, gentios, ou seja, pagãos, idólatras, infiéis, silvícolas, seres não integrados na ordem colonial, ariscos, arredios, bravos. Gentios eram pessoas incivilizadas. Esqueceram-se de colocar a expressão “gentio” na nova lei. Talvez porque não seja expressão de uso corrente do populacho. Mas, com lei e tudo, índio, continua sendo. É assim que a maior parte do povo brasileiro, inclusive parte da elite – mormente a ruralista -, continua se referindo àquelas pessoas.

E porque?

Justamente porque foram e continuam sendo chamados de índios por mais de 500 anos. São os incivilizados, não integrados, pagãos infiéis que não merecem nada além do extermínio, da humilhação, da segregação em áreas cada vez menores.

Mas porque?

Se for pra buscar compreensão pra além da história de reiterada espoliação, violência e descaso para com estas populações, talvez uma boa pista seja justamente estudar a linguagem. Pense no que formulou e ensinou Lacan – Jacques Marie Émile Lacan, 1901- 1981, psicanalista francês que torceu revolucionariamente o conceito de inconsciente que, para ele, deve ser pensado nas relações da fala e nas interações de linguagem. O inconsciente não está nas profundezas, mas na superfície e opera por meio da repetição, transferência e pulsão, ou seja, realidade, simbolismo e imaginação.

Para Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem e o indivíduo começa a ser inscrito no mundo a partir do momento que lhe é dado um nome; é a linguagem que inscreve a cultura, o desejo, a falta e o inconsciente no sujeito. A língua existe porque o inconsciente se estrutura como uma linguagem, e a linguagem e o desejo inconsciente se relacionam concomitantemente em uma série de significantes.

A linguagem que dá forma à gênese do sujeito, é o meio em que o indivíduo é mergulhado desde o nascimento, o meio que o sujeito deverá subjetivar, onde ele deverá se encontrar em sua própria história real, que o psicanalista designa como lugar do Outro. A realidade é uma construção subjetiva, simbólica e imaginária. Para Lacan, o real existe; o simbólico insiste; o imaginário consiste.

A angústia, por exemplo, é da ordem do real, ou seja, ela invade o corpo e constitui para o sujeito uma certeza absoluta – ninguém tem dúvidas quanto ao fato de estar angustiado. Acredito ser desta ordem “real” o que tem levado dezenas de jovens indígenas a se suicidarem no Brasil.

Já o imaginário é marcado pela idealização e pela relação dual. O Imaginário humano distingue-se do imaginário animal, pois está inserido na ordem da linguagem, portanto é artigo de representação. É o lugar do sentido porque o “eu” se firma a partir do significado que atribui a si e a fatores externos, o lugar de suas ideias, crenças, defesas, resistências.

Lá em 1500, o que imaginaram os povos originários daqueles homens vestidos que aportavam em suas terras? O que imaginaram sobre suas cruzes e armas? E eles, o que imaginaram daqueles homens nus, de sua alegria e ouro? E hoje, o que imaginamos nós dos povos indígenas? E eles, o que imaginam de nós? Algo mudou?

O simbólico, este traz a marca de uma relação sublimada, de duplo sentido. Ele garante a transcendência do imaginado para que o sujeito não se consuma em si mesmo. Institui o “outro como outro” e o eu, como sujeito. Entende-se o próprio reflexo como seu e cria-se o diferente, e esta construção será repetida automaticamente num “processo circular do intercâmbio da fala” responsável pela constituição, propriamente dita, do Real, “ou a totalidade ou o instante esvanecido”.

Acredito que esta passagem do imaginário idealizado sobre os homens que chegaram nas terras brasileiras para a realidade simbólica continua operando permanentemente para os povos originários, pois não é possível que os brancos sejam tão horrorosamente cruéis sempre, e sempre e sempre, por mais que eles lhes tenham entregue o ouro, as terras, a alegria. E para os brancos? Conseguiram transcender o imaginado índio ou indiano, gentio e incivilizado e simbolizá-lo como igualmente diferente?

Finalizo a reflexão lembrando ainda que Lacan também fala do trauma da língua. Ele se refere a um tipo de generalização do trauma, o do impacto das palavras escutadas, das frases pronunciadas que incidem sobre o corpo sem que tenha sido possível naquele momento lhe atribuir um sentido.

Observando bem – visite uma aldeia, uma qualquer, e se não puder, reveja matérias jornalísticas e documentários -, creio que os povos originários brasileiros ainda estão tentando entender o que quer dizer o que falamos e porquê, seja o que for que digamos, lhes dói tanto, sempre dói. “É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas”. E só a consciência altera as palavras e o mundo.

19 de abril de 2024

Berenice Mendes